DIREITOS DOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO NO BRASIL
O direito brasileiro tem vivenciado há algum tempo o nascimento e desenvolvimento do denominado Direito Animal, já bem fixado em legislações de outros países como Portugal, Alemanha, Suíça, Áustria e França, mas ainda em construção na doutrina e jurisprudência do Brasil.
O sujeito alcançado pelo Direito Animal positivo difere do sujeito do Direito Ambiental previsto na Constituição. Conforme o art. 225, §1º, VII da Constituição Federal de 1988:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(...)
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
Portanto, no Direito Ambiental, os animais, na fauna, são protegidos de acordo com sua função ecológica, visando o equilíbrio do meio ambiente e o bem estar do ser humano no meio ambiente, atualmente e para as gerações futuras. O Direito Animal, por sua vez, é o conjunto de regras e princípios que estabelece os direitos fundamentais dos animais não-humanos, considerados em si mesmos, independentemente da sua função ambiental ou ecológica.(ATAIDE Jr., 2018).
Entra na categoria de sujeito do Direito Animal os denominados animais de estimação, ou companhia. A importância dos animais de companhia na atualidade é perceptivelmente incomensurável de tão vasta. A companhia de um animal, pet, como são comumente chamados esses animais, vem sendo admitido como básico e essencial.
O que caracteriza os referidos animais são, principalmente, os fortes laços afetivos estabelecidos dentro do núcleo de pessoas com que estes se relacionam, de forma que a maioria dos responsáveis por eles considera seu pet como um amigo ou até um membro da família (COSTA; FERREIRA, 2018, p. 25-26).
De acordo com dados de 2018 da ABINPET (Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação), o Brasil é o segundo maior do mundo em população de cães, gatos e aves canoras e ornamentais, figurando ainda como quarto maior do mundo em população total de animais de estimação, que somavam, à época da pesquisa, aproximadamente 132,4 milhões (ABINPET, 2017).
Todos esses fatores acerca dos animais de companhia, desde o seu enorme crescimento quantitativo até à comprovada valorização da qual têm sido alvo acaba suscitando o interesse do Direito, que procura tutelar tudo o que é valioso ao ser humano.
Grandes discussões já cingem o tema: qual é a diferença prática da aplicação do Direito Animal e não Ambiental ou das Coisas como versa o nosso presente Código Civil, de quais direitos esses animais podem ser sujeitos já que não possuem personalidade, quais são as consequências jurídicas da atribuição desses direitos antes restritos aos seres humanos pessoais, a animais denominados sencientes (capaz de sentir ou perceber através dos sentidos), mas não racionais?
Como sempre, a realidade precedeu a previsão da legislação e já existem diversos entendimentos jurisprudenciais que versam acerca de muitos desses questionamentos. Um grande expoente das ações envolvendo esses animais é a ação de divórcio, em que os ex-cônjuges, ao dividir os bens disputam judicialmente também pela guarda do pet.
Na visão positivista, o tema seria de fácil resolução, a partir do entendimento de que para o Direito Civil Brasileiro, o animal é regido pelo Direito das Coisas, conforme se vê:
Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.
Art. 1.232. Os frutos e mais produtos da coisa pertencem, ainda quando separados, ao seu proprietário, salvo se, por preceito jurídico especial, couberem a outrem.
Portanto, na divisão de bens, o animal de estimação e seus filhotes, se houver, pertenceriam ao proprietário, geralmente definível por aquele cujo nome consta no documento de pedigree ou, se o animal não o tiver, em sua carteira de vacinação. No entanto, há fortes controvérsias. Em artigo publicado pela revista INTERthesis, Camilo Henrique Silva diz:
“Apesar da clareza legal, o mundo científico e biológico, no mesmo sentido da Constituição Federal brasileira, atesta que os animais não humanos não são meros objetos, como aponta a letra fria do Código Civil. Atualmente, fato notório e indiscutível no mundo, os animais, em especial mamíferos e aves, são considerados seres sencientes, dotados de certa consciência, sentem dor, prazer, frio, medo, demonstram sentimentos, fazem escolhas, enfim, se preocupam com o que lhes acontece, dentro, claro, de suas especificidades e particularidades.” (p. 104-105)
Chega-se à conclusão de que as normas que vigoram hoje no Brasil não são capazes de apresentar soluções eficientes para dilemas como esse.
Há um Projeto de Lei que trata o tema especifico; trata-se do PL 1058/2011, ou PL 1365/2015, arquivado no presente. Este projeto, além de dispor acerca da guarda dos animais de estimação, como as características para o seu deferimento e obrigações das partes quanto ao pet, expõe a justificativa para a necessidade da lei, eis um trecho:
Os animais não podem ser mais tratados como objetos em caso de separação conjugal, na medida em que são tutelados pelo Estado. Devem ser estipulados critérios objetivos em que se deve fundamentar o Juiz ao decidir sobre a guarda, tais como cônjuge que costuma levá-lo ao veterinário ou para passear, enfim, aquele que efetivamente assista o pet em todas as suas necessidades básicas.
No entanto, como foi dito, tal projeto de lei se encontra arquivado, de forma que acaba restando ao Poder Judiciário resolver os litígios que lhe são apresentados, já que não pode deixar de apreciá-los sob pretexto de falta de previsão legal. Ao Poder Judiciário coube assim a responsabilidade para estabelecer os parâmetros legais que envolvem estes tema.
Uma decisão relativamente recente e inédita do STJ, datada de 9 de outubro de 2018 garantiu direito de visita do ex-companheiro de uma mulher ao animal de estimação, adquirido durante a união estável, depois da dissolução do estado civil.
A ementa representa com fidelidade o entendimento e o tratamento brasileiro sobre o tema:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. ANIMAL DE ESTIMAÇÃO. AQUISIÇÃO NA CONSTÂNCIA DO RELACIONAMENTO. INTENSO AFETO DOS COMPANHEIROS PELO ANIMAL. DIREITO DE VISITAS. POSSIBILIDADE, A DEPENDER DO CASO CONCRETO. 1. Inicialmente, deve ser afastada qualquer alegação de que a discussão envolvendo a entidade familiar e o seu animal de estimação é menor, ou se trata de mera futilidade a ocupar o tempo desta Corte. Ao contrário, é cada vez mais recorrente no mundo da pós-modernidade e envolve questão bastante delicada, examinada tanto pelo ângulo da afetividade em relação ao animal, como também pela necessidade de sua preservação como mandamento constitucional (art. 225, § 1, inciso VII - "proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade"). 2. O Código Civil, ao definir a natureza jurídica dos animais, tipificou-os como coisas e, por conseguinte, objetos de propriedade, não lhes atribuindo a qualidade de pessoas, não sendo dotados de personalidade jurídica nem podendo ser considerados sujeitos de direitos. Na forma da lei civil, o só fato de o animal ser tido como de estimação, recebendo o afeto da entidade familiar, não pode vir a alterar sua substância, a ponto de converter a sua natureza jurídica. 3. No entanto, os animais de companhia possuem valor subjetivo único e peculiar, aflorando sentimentos bastante íntimos em seus donos, totalmente diversos de qualquer outro tipo de propriedade privada. Dessarte, o regramento jurídico dos bens não se vem mostrando suficiente para resolver, de forma satisfatória, a disputa familiar envolvendo os pets, visto que não se trata de simples discussão atinente à posse e à propriedade. 4. Por sua vez, a guarda propriamente dita - inerente ao poder familiar - instituto, por essência, de direito de família, não pode ser simples e fielmente subvertida para definir o direito dos consortes, por meio do enquadramento de seus animais de estimação, notadamente porque é um munus exercido no interesse tanto dos pais quanto do filho. Não se trata de uma faculdade, e sim de um direito, em que se impõe aos pais a observância dos deveres inerentes ao poder familiar. (...) 6. Os animais de companhia são seres que, inevitavelmente, possuem natureza especial e, como ser senciente - dotados de sensibilidade, sentindo as mesmas dores e necessidades biopsicológicas dos animais racionais -, também devem ter o seu bem-estar considerado. 7. Assim, na dissolução da entidade familiar em que haja algum conflito em relação ao animal de estimação, independentemente da qualificação jurídica a ser adotada, a resolução deverá buscar atender, sempre a depender do caso em concreto, aos fins sociais, atentando para a própria evolução da sociedade, com a proteção do ser humano e do seu vínculo afetivo com o animal. 8. Na hipótese, o Tribunal de origem reconheceu que a cadela fora adquirida na constância da união estável e que estaria demonstrada a relação de afeto entre o recorrente e o animal de estimação, reconhecendo o seu direito de visitas ao animal, o que deve ser mantido. 9. Recurso especial não provido (STJ. RECURSO ESPECIAL REsp 1713167 / SP 2017/0239804-9. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. DJe: 09/10/2018)
Deve-se citar ainda o Enunciado 11 aprovado pelo IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), que versa:
Enunciado 11. Na ação destinada a dissolver o casamento ou a união estável, pode o juiz disciplinar a custódia compartilhada do animal de estimação do casal.
O que pode ser compreendido desses entendimentos é o tratamento ainda embrionário do Brasil sobre os temas referentes ao Direito dos Animais e suas ações, como a de guarda, de visita, ou de alimentos, apesar da ampla necessidade de sua regulamentação.
A questão dos alimentos, por exemplo, pode ser aplicada em analogia ao caso dos tutores e seus animais de estimação, pensando no conceito amplamente disseminado na atualidade de família por afeição e não somente de parentesco sanguíneo. O direito brasileiro regula a prestação de alimentos, entre outros, no Código Civil, nos arts. 1.694 e 1.695, dispondo que:
Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.
§ 1o Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada.
§ 2o Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situação de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia.
Art. 1.695. São devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento.
Como nos casos de relação familiar, as responsabilidades do tutor obrigado com o seu animal de estimação vão além dos alimentos devidos, abrangendo também saúde (vacinas, tratamentos veterinários), vestuário ou acessórios (coleira, roupas, cama, entre outros), lazer (brinquedos e passeios) e outros, de forma a garantir ao pet uma vida compatível com a condição social de seus tutores.
Ainda por analogia com outras legislações, especificamente com o Direito de Família, é possível se falar em alienação parental, transtornos decorrentes de traumas e até mesmo tratamento terapêutico comportamental para os animais. Existe ainda a possibilidade de registrar a “identidade” do animal em cartório, para que seja facilmente identificável ou atendido.
Todos esses fatores demonstram a tendência atual de se considerar os animais como família, atribuindo-lhes uma quase personalidade dentro do direito, como absolutamente incapazes.
Na falta de leis específicas, tem-se aplicado o Direito Ambiental, o Direito de Família e o Estatuto da Criança e do Adolescente, além da Constituição Federal. Argumenta-se a partir da dignidade humana de manutenção do vínculo afetivo, da sensibilidade dos animais, sua adaptação e manutenção de hábitos para a saúde e bem estar do pet, entre outros aspectos.
Como um país com tão significativa representação de animais de companhia ou de estimação, o Brasil ainda possui pouco amparo nesse aspecto, mas já é possível reconhecer alguns avanços, lembrando que, conforme dito por Deborah Ferreira da Costa e Fabiano Ferreira em artigo publicado na Revista Brasileira de Direito Animal:
“ao respeitarmos os animais-não humanos, promovemos o bem comum, convivendo em um ecossistema equilibrado, sem impingir violência ou dor a outro ser vivo. Ao atribuir novo status ao animal como ser senciente, alçamos o princípio da dignidade humana ao patamar de proteção de todos os homens.” (COSTA; FERREIRA, 2018, p. 34)
Referências
- ABINPET – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA INDÚSTRIA DE PRODUTOS PARA ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO. População de Animais no Brasil.2017.
- ATAIDE Jr. Vicente de Paula. Introdução ao Direito Animal Brasileiro. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 13, n. 3, p. 48-76, set-dez 2018.
- COSTA, Deborah Regina Lambach Ferreira da; FERREIRA, Fabiano Montiani. O Direito dos Animais de Companhia. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 13, n. 2, p. 24-39, mai-ago 2018.
- SILVA, Camilo Henrique. Animais, Divórcio e Consequências Jurídicas. Revista INTERthesis, Florianópolis, v. 12, n. 1, p. 102-116, jan-jun 2015.
- STJ. RECURSO ESPECIAL REsp 1713167 / SP 2017/0239804-9. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. DJe: 09/10/2018.
Post elaborado em coautoria por:
RAFAELA DOS REIS RIBEIRO
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Estado de Goiás (UFG-GO), membro da Ex Lege no ano de 2019, membro do projeto de extensão Avante NPJ.
FREDERICO HORÁCIO DE LUIZ LOPES
Graduou-se em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Estado de Goiás (PUC-GO) em 2013. Advogado regularmente inscrito na OAB/GO. sob o nº 43.374; Pós Graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela instituição Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus; Aprovado no XVI exame da OAB, com nota máxima na segunda fase em Direito do Trabalho; Coordenador da Subcomissão do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), pela OAB/GO– TRIÊNIO 2016-2018; Membro da Comissão da Advocacia Jovem, pela OAB/GO– TRIÊNIO 2016-2018; Membro da Comissão de Direito Bancário, pela OAB/GO– TRIÊNIO 2016-2018; Membro da Comissão de Direito Constitucional e Legislação, pela OAB/GO– TRIÊNIO 2016-2018; Membro da Comissão de Direito Desportivo, pela OAB/GO– TRIÊNIO 2016-2018; Membro da Comissão de Direito do Consumidor, pela OAB/GO– TRIÊNIO 2016-2018; Membro da Comissão de Direito do Trabalho, pela OAB/GO– TRIÊNIO 2016-2018; Membro da Comissão de Direito Imobiliário e Urbanístico, pela OAB/GO– TRIÊNIO 2016-2018; Membro da Comissão de Direito Previdenciário e Securitário, pela OAB/GO– TRIÊNIO 2016-2018; Membro da Comissão de Direitos e Prerrogativas, pela OAB/GO– TRIÊNIO 2016-2018; Membro da Comissão Especial do Direito do Agronegócio, pela OAB/GO– TRIÊNIO 2016-2018; Membro da Comissão de Direito Agrário, pela OAB/GO – TRIÊNIO 2016-2018; Membro da Comissão de Direito Desportivo, pela OAB/GO– TRIÊNIO 2016-2018; Membro da Comissão de Família e Sucessões, pela OAB/GO – TRIÊNIO 2016-2018; Membro da Comissão de Direito Tributário, pela OAB/GO – TRIÊNIO 2016-2018; Membro da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência, pela OAB/GO – TRIÊNIO 2016-2018.
Artigo elaborado em 06/08/2019
Artigo disponibilizado em 07/08/2019, através do link: